domingo, 17 de febrero de 2008

PORTUGUESE

A REABILITAÇÃO DA FUNÇÃO SENTIMENTO POR C. G. JUNG
EM NOSSA CIVILIZAÇÃO CONTEMPORÂNEA


MARIE-LOUISE VON FRANZ



Tradução para o português por Flora Bojunga Mattos e Conceição Soares Beltrão, revisado no alemão por Elis Souza, revisão geral Elisa Freitas Machado.


Quando Jung tinha de 21 a 23 anos e estudava Medicina deu 4 conferências para seus colegas na Associação de Estudantes de Zofingia na Basiléia. Em uma delas, em 1897, cita a seguinte passagem da ‘psicologia’ de Kant: “A questão principal é sempre a moral; esta é o sagrado e inviolável que devemos proteger, e esta é também o fundamento e meta de todas as nossas especulações e buscas. Todas as especulações metafísicas surgem daí. Deus e o ‘outro mundo” é o único intuito de todas as nossas investigações filosóficas e, se os conceitos de Deus e de ‘outro mundo’ não se relacionam com a moral, não servem para nada.”
Sendo assim – depois de um agudo ataque ao materialismo em geral, prossegue Jung: “Se deve exigir a moral em primeiro lugar como ’Revolução Total’ à ciência e a suas representantes, através de certas verdades transcendentes (...). Se deve, por exemplo, ensinar nos institutos de fisiologia, lugar em que intencionalmente se debilita o juízo moral dos estudantes, ante experimentos vergonhosos, bárbaros, mediante torturas cruéis de animais que são incompatíveis à humanidade – em tais institutos, digo, se deve ensinar que nenhuma verdade que seja investigada por meios imorais pode se converter em justificação moral de existência. (O grifo é meu).
Por isso Jung se volta em direção a Kant e destaca sua idéia de que só a crença em realidades que se encontram mais adiante do toscamente material pode garantir uma atitude moral da vida do homem. O que eu quero salientar mediante estas citações é isto: Jung era em si mesmo um tipo pensamento introvertido, mas até nesta conferência de sua juventude expressa seu sentimento. Nunca foi um intelectual frio. Desde essa conferência foram transcorridos 84 anos, e onde estamos hoje com respeito a este problema?
A tortura cruel de animais tem se multiplicado por mil, não só nos laboratórios científicos, mas hoje em dia também na agricultura, e se tem estendido conseqüentemente à tortura de incontáveis homens em todo o mundo. Militares peritos contam hoje com sangue frio como podem ser exterminados em uma guerra atômica milhões de homens. Concordo – é a sua profissão; mas não se observa que estejam perturbados ou deprimidos quando devem fazer estes cálculos. Porém estas coisas são conhecidas, de modo que me volto, preferivelmente, ao que está mais próximo, isto é, ao nosso próprio âmbito: a psicologia. Nas universidades impera a estatística, só são recebidas como sérias as afirmações ‘duras’, isto é, estatísticas. Contudo, durante muito tempo Jung tem posto o dedo na chaga: as estatísticas descrevem somente uma imagem intelectual-abstrata do objeto investigado, não sua realidade: quando afirmamos, por exemplo, que em média a pedra pesa ½ kg dentre um monte de pedras e não encontramos em realidade quase nenhuma pedra que pese exatamente ½ kg! Assim construímos um modelo abstrato da realidade e depois o confundimos com a realidade concreta, a que, todavia, considerada com mais precisão, consiste em mera exceção. Todas as ciências fundadas matematicamente vão por esse caminho; e porque Jung não participava dele o acusavam de ser ‘acientífico’ – talvez fosse isto até verdadeiro, porém Jung é mais realista. Na terapia Jung se opunha ao antigo vestuário branco do médico; que trata aos pacientes como a um objeto impessoal – ele se punha à frente de cada paciente com seu próprio sentimento pessoal – fosse esse positivo ou negativo – e fazia de cada hora de análise um encontro pessoal. Discípulos de Jung, que uma ou outra vez introduzem de modo ilegítimo procedimentos técnicos como a pretendida discussão sobre a transferência, têm retrocedido sensivelmente a uma forma de pensamento pré-junguiana. Isto se refere em especial ao chamado problema da transferência, isto é, precisamente a relação sentimental, que entretanto, é tratada como uma grandeza manipulável.
Em uma carta Jung escreve expressamente: “A dissolução da transferência muitas vezes consiste em cessar de descrever a natureza da relação como ‘transferência’. Esta designação rebaixa a relação para uma mera projeção, a qual ela não é. ‘Transferência’ consiste na ilusão de sua singularidade, quando vista de um ponto de vista coletivo e convencional. ‘Ser único’ jaz única e simplesmente na relação entre pessoas individuadas, as quais não têm outros relacionamentos exceto individuais, isto é, pessoas únicas”.
[1] Por isso – assim se deve concluir – a palavra transferência devia ser aplicada quando intencionalmente se procura de algum modo desvalorizar as projeções ilusórias, porém não na relação sentimental que se constrói no curso do tratamento.
A amabilidade forçada trata-se, naturalmente, de uma falsa virtude, tão falsa quanto a que certos analistas mostram a seus pacientes – ela segue o antigo papel da prática médica e serve como meio de camuflagem para não se ter que expressar os sentimentos genuínos e verdadeiros. Sentimentos que, freqüentemente, não são em absoluto de todo amáveis, isto é, que tentam, desse modo, iludir rechaços e confrontações. Esta amabilidade-persona é derivada do sentimentalismo cristão, ao qual voltarei mais adiante.
Mas primeiro voltemos ao problema das ciências: nosso mundo científico moderno e tecnológico e sua forma de vida têm sido construídos por cientistas cuja função principal é o pensamento extrovertido ou introvertido, também acoplado à percepção extrovertida ou introvertida. Na Física, por exemplo, se destacam os introvertidos como Einstein, Bohr, Pauli, etc., na física teórica; os extrovertidos, como por exemplo, Wernher Von Braun, na Física experimental. A função da intuição é totalmente rechaçada, porque se necessita de idéias especulativas a fim de fazer novos modelos de pensamento. Porém o sentimento não está em nenhuma parte e está expresso, na maioria das vezes, somente em frases infantis bem intencionadas que conte todas a palavrinha ‘deveria’. E com exceção de Niels Bohr; todos os físicos mencionados colaboraram ou quiseram colaborar na fabricação da bomba atômica! Hoje existe entre os físicos nos Estados Unidos uma tendência à filosofia hinduísta, que por certo é antimaterialista, porém considera a vida do indivíduo um nada.
Quão inumana tornou-se a medicina moderna, não se necessita nenhuma explicação. Os periódicos estão cheios disso, porém quase nada sucede. Por isso o trabalho solitário e pioneiro da Dra. Elisabeth Kübler-Ross, deu um passo na direção correta.
Outro âmbito no qual nosso sentimento, lamentavelmente, funciona mal é na chamada Ajuda para o Desenvolvimento. O médico Benno Glauser publicou a respeito um notável artigo no periódico suíço da Cruz Vermelha.
[2] Nele desmascara como nós, povos de outras culturas, tentamos ajudar e, ao mesmo tempo, pretendemos impor-lhes nossas religiões ou pontos de vista científicos e, desse modo, destruímos seus próprios fundamentos vitais, espirituais e religiosos. Nossos médicos, missioneiros, arquitetos e agrônomos partem todos da premissa de que sabem o que é verdadeiro ou falso para os outros e se vêem, ocasionalmente, decepcionados e ressentidos se estes povos rechaçam a ajuda deles com apatia, resistência e o chamado desagrado. Eu gostaria de citar do artigo de Glauser, o quê um pai-índio no Paraguai disse a uma auxiliar médica:[3] “Para nós, pai, a saúde é um estado ao que chamamos ‘tekoresai’; e para que esta ‘condição de saúde plena’ seja possível, deve haver diversas coisas e situações; todas elas pertencem a ‘condição de saúde plena’ e o constituem: as plantas e árvores, tomadas unicamente como meios curativos; mas também todas as árvores e plantas em seu conjunto; as palavras verdadeiras e equilibradas ou a boa alimentação; o não-passar-por-cima-dos-outros; a selva virgem, a harmonia, a comunidade da aldeia; o falar e dialogar com os outros; a conservação e proteção de nossa ‘forma de ser’; o viver nossa própria cultura e a forma de ser; o sentimento da força, que nos é dada através de todas as coisas que tenho mencionado; a união de nossa comunidade; o viver tranqüilos e em segurança em nossa terra; o viver juntos em família e na comunidade aldeã; as festas. – Então, vêm vocês brancos e nos fazem dependentes do dinheiro e de outras coisas materiais: isto destrói nossa ‘condição de saúde plena’. Vocês dizem coisas más, falam mal dos outros; se apropriam de nossa terra, não ter terra quer dizer não comer nada, não comer nada quer dizer enfermidade. E, finalmente, buscando em seus bolsos, vocês sacam uma pílula branca e querem fazer-nos crer que se tomarmos essa pílula ali está a saúde, que ela seria a saúde...”
Todo o nosso fazer destrutivo consiste, como salienta Glauser, em uma fundamental falta de respeito pelos outros homens e pelos seus valores culturais sentimentais diferentes dos nossos – em outras palavras, numa falta do sentimento genuíno diferenciado. Conhecemos a fundo muito bem esses efeitos catastróficos de nosso proceder e, também, sabemos que existe um ódio crescente de outras nações em relação à raça branca, porém, em troca, não parece que estivéramos dispostos a fazer algo para resistir a isto.
Todavia, não é necessário ir até povos tão distantes, porque a mesma atitude, a falta de sentimento, também predomina entre nós de um grupo para o outro. Os arquitetos de nossa cidade e nossa região, por exemplo, projetam em suas pranchetas de desenho planos da cidade e das ruas que depois vão destruir a felicidade da vida de incontáveis seres. Eles pensam com total sangue frio que se um agricultor expropriado recebe uma indenização adequada em dinheiro ou em terras a questão fica solucionada. Mas não leva em conta, em absoluto, que talvez o que este camponês ame, o seu pedaço particular de terra. Tiramos os velhos de suas casas, de seus bairros, onde eles têm gatos e dão de comer aos pássaros, e depois nos admiramos quando subitamente eles morrem em suas novas e assim chamadas higiênicas moradas, nas quais não há gatos nem pássaros que emporcalham.
Que devemos fazer então? Transformar nossa política e, portanto, nossa legislação? Acaso a última trata publicamente deste problema? Erich Neumann quis colocar de uma forma militante, em seu livro ‘Psicologia Profunda e Nova Ética’, novas regras morais; seu livro causou impressão, mas no fundo não produziu nenhum resultado. Evidentemente, não é esse o meio de abordar o problema. Creio que Jung de 22 anos pôs o dedo na chaga, quer dizer, que primeiro devemos reconhecer a ‘Realidade da Alma’, isto é, do Inconsciente e, desse modo, também a realidade da imagem divina do Si Mesmo e uma realidade transmaterial, antes que nos aferremos a alguma outra coisa. Deixem-me dar um exemplo: eu dei, não faz muito, uma conferência na Alemanha sobre sonhos de moribundos, os quais parecem sugerir uma possível vida depois da morte. Depois da conferência veio a mim uma enfermeira com os olhos cheios de lágrimas e disse: “O que você disse não pode nem deve estar certo, pois do contrário eu seria responsável por coisas tão horríveis.” Ela não disse o que era, mas evidentemente havia cuidado mal de pacientes moribundos, – talvez até lhes houvesse roubado – na crença de que eles já não estivessem mais conscientes, de modo que sua ação já não teria más conseqüências. Mas, naturalmente, e se a alma deles estava lá? Seria outra coisa. Não é por acaso que a Dra. Kübler-Ross começou a se ocupar do espiritismo, segundo ouvi dizer. Pela lógica é o passo seguinte no seu trabalho com moribundos, quando não se está persuadido, como nós, pela realidade do inconsciente. Seu sentimento a conduz, conseqüentemente, nesta direção.
Em religiões de todas as épocas existiu e existe a representação de um deus ou de deusas e de outro ‘Mundo de Mais Além’, de vida imaterial, e só isso pode embasar o fundamento de uma ética mais real. “O Desvio do Numen’, escreve por isso Jung “parece ser entendido universalmente como o pior e mais original pecado.”
[4]
E ao inverso, a essência de toda ética está baseada no fenômeno da consciência, isto é, na relação sentimental entre a ‘pessoa humana e Deus’
[5] ou o arquétipo do Si Mesmo.
Em troca o que nós vivenciamos em toda parte no mundo toscamente material é o padecimento injusto e o triunfo da injustiça. Através da honradez, se a colocamos em prática, somos tidos por ingênuo-tontos. O sofrimento inocente dos primeiros mártires cristãos exerceu pelo menos um efeito sobre a massa e converteu muitos ao cristianismo. Mas, quem se lembra hoje do nome daquele jovem professor da escola alemã que foi voluntariamente à câmera de gás com seus alunos judeus para confortá-los? O Que é que provoca os sofrimentos dos descendentes e valentes cristãos na Rússia? Nada! Lemos a respeito deles nos jornais e, de certa forma, o fazemos com um resignado encolhimento de ombros.
A Dra. Liliane Frey publicou o sonho de um paciente moribundo cuja vida havia sido uma sucessão de fracassos exteriores. Ele sonhou:
[6] “Uma voz... me disse: teu trabalho e o sofrimento que conscientemente atravessaste, redimiu a cem gerações antes de ti e iluminará a cem gerações depois de ti.”
Também aqui é a existência do mundo do Além o decisivamente importante. Em um mundo só material não existe consolo algum para este homem.
Mas porque isso, especialmente, teria a ver com a função sentimento? Não é por acaso o reconhecimento de uma realidade psíquica importante para as quatro funções da consciência? Evidentemente, “se a ética dos valores é, sobretudo, um produto da função sentimento altamente diferenciada”,
[7] como escreveu Jung, ela exige certa inteligência, sobre a qual voltarei mais adiante. Mas, em todo caso, a ética não pode existir sem sentimentos diferenciados, de outro modo ela se converteria em um código rígido de regras de conduta, isto é, um puro dever coletivo. Todos podem experimentar isso, quando, por exemplo, uma simples ordem policial é aplicada esquematicamente, ou em grande escala podemos ver como funciona o aparato estatal na Rússia.
Mas agora alguém poderia objetar: onde estão então os tipos sentimento, que concretamente devem existir em grande número em todos os povos? Porque eles não compensam essa carência? Aqui devemos fazer uma diferença entre a existência de tipos sentimento e o estilo coletivo da época, e a atitude coletiva de uma cultura. Naturalmente, teremos muitos tipos sentimento com sentimento diferenciado entre nós, mas a moda, o espírito coletivo de proceder e valorar, não reconhece o sentimento. Isso debilita a influência do sentimento até nos tipos sentimento. Além do mais, a função inferior de um tipo sentimento – como sabemos – é o pensar, o qual terá por isso freqüentemente as tendências inferiores da época: na nossa, o materialismo e intelectualismo baratos. Assim vemos, por exemplo, em mais de uma cultura latina, uma preferência pela ideologia comunista em sua forma mais estúpida, enquanto o povo mesmo é bem carente de sentimentos e de relação, como o são vários povos não latinos. Penso aqui na Espanha, Itália e alguns países Sul Americanos. O que, sobretudo, resulta tão mal é que o espírito da época (Zeitgeist) oficial desvaloriza o sentimento. Freqüentemente escutamos o juízo (por exemplo, contra os adversários da energia atômica) que eles, ‘quando solicitados só apresentam argumentos sentimentais em vez de fundamentos racionais’, e, por certo, com o sentido implícito de que um argumento sentimental é eo ipso sem sentido. De forma parecida isto se mostra nos alvoroços armados por jovens revoltosos. Algumas bem intencionadas tratativas intentam, uma e outra vez, entrar em contato com os jovens rebeldes de forma “razoável” (entre aspas!) – totalmente sem resultado, porque estes jovens são movidos por sentimentos completamente obscuros, em sua maior parte negativos, que não se podem traduzir em uma linguagem racional ou sentimental. Muitos governos propõem um programa qualificado de ajuda de grande alcance para jovens sem trabalho, a fim de possibilitar-lhes uma instrução posterior. Isso é seguramente bom e justo, mas ajudará o suficiente? Deixará de rebelar-se um jovem sem trabalho se aprende um pouquinho mais de eletrônica? Sabemos que os soviets pagam em parte a esses rebeldes, mas é suficiente que lhes demos também dinheiro? Não creio muito que possamos corrigi-los, se nós mesmos permanecermos em nível do materialismo racional; no que este seja totalmente falso; só é falso quando cremos que isso é tudo. Jung escreveu em uma carta
[8] que nos tornamos materialistas “unilateralmente intelectualistas e racionalistas”, e que esquecemos totalmente que há ainda outros fatores que não se deixam fluir pela retidão da razão e do entendimento. Por isso vemos por toda parte inflamar-se uma emocionalidade mística, que desde a Idade Média se havia dado por desaparecida. Esta é uma compensação ao progresso técnico excessivamente rápido.
Conseqüentemente necessitamos mais que entendimento e razão, porque as últimas irritam mais ainda os jovens; deveríamos poder lhes oferecer uma nova visão de conjunto, criadora do ser e, por certo, não materialista como totalidade – segundo minha opinião, deveríamos poder estabelecer uma relação com o inconsciente como uma realidade transcendente, relação que não só deveria ser feita com o entendimento, senão também com o sentimento e a emoção. O que acontece com as numerosas formas da Mística Oriental que estão tão em moda entre nós no Ocidente? Também elas chegaram para nós demasiado fáceis e outra vez como algo intelectual, em última instância, elas se aplicam ao pensar e à intuição ou, como formas de Yoga, à percepção. Estes ensinamentos, como Jung pôs em relevo, propriamente são, na verdade, sistemas teológicos que tem pouco ou, absolutamente, não levam em conta o indivíduo e sua relação com o Divino. “Por demasiada sabedoria oriental” escreve ele
[9], (...) “a experiência direta é substituída por um excessivo conhecimento oriental”, escreveu ele, “e, assim, fica obstruído o acesso à psicologia. É compreensível, porém, que as pessoas tentem primeiro os caminhos já percorridos, antes que possam decidir-se a andar pelo caminho ainda não trilhado”.
E em uma carta a Miguel Serrano
[10] escreve mais: “O senhor escolheu dois bons representantes do Oriente e Ocidente. Krishnamurti é totalmente irracional e deixa a solução para a quietude, isto é, deixa-a como fazendo parte da mãe natureza. Toynbee, por outro lado, acredita em fazer e moldar opiniões. Nenhum dos dois acredita no florescimento e desdobramento do indivíduo como um experimento e uma obra duvidosa e desconcertante do Deus vivo. A ele devemos emprestar nossos olhos, ouvidos e nosso espírito perspicaz (...)” (porque Deus em nós quer ter lugar na consciência). “Nós precisamos urgentemente de uma verdade ou de uma autocompreensão semelhante à do Antigo Egito, como eu a encontrei ainda viva entre os taos-pueblo. O chefe de seu culto, o velho Ochwiäh Biano (lago da montanha), me disse: ‘Nós somos o povo que vive no teto do mundo, nós somos os filhos do Sol que é nosso pai. Nós o ajudamos todo dia a nascer (...). Não o fazemos só por nós, mas também por todos os americanos. Por isso não deveriam interferir em nossa religião. Mas se continuarem a fazê-lo (por meio de missionários) e nos perturbarem, então verão que em dez anos o Sol não mais se levantará.’ Ele supõe corretamente que o dia, a luz, a consciência e o sentido deles vão morrer se forem destruídos pela estreiteza mental do racionalismo americano, e o mesmo acontecerá ao mundo todo se submetido a tal tratamento.”
Em outro lugar
[11] Jung salienta, que quando tomamos sem crítica os ensinamentos do Oriente, freqüentemente essas idéias são mais importantes que a vida interior, a esperança e o êxtase liberador da experiência interior se extraviam nesse esforço predominantemente intelectual, de modo que, em vez da experiência original, temos uma imitação exercida como método.
Muitos métodos orientais inclusive reprimem o inconsciente em vez de estabelecer uma relação com ele.
[12] Tudo isto deveria bastar para mostrar que na visão de Jung não pode haver nenhuma ética verdadeira sem a experiência original viva do Divino. Não é pela adesão a alguma doutrina teológica e outras. A experiência original só pode ser experimentada pelo indivíduo – o que não é experimentado nunca é verdadeiramente real para mim, pode existir em minha cabeça como idéia ou opinião, mas não é uma experiência. Uma coisa é, que eu conheça só por livros que existem os elefantes, e outra, que eu tenha visto, cheirado, tocado em um deles. Só essa é uma verdadeira experiência, se eu mesmo experimento algo com todas as funções, incluindo o sentimento.
Então, como ficamos com a vida cristã do amor ao próximo – não é ela no fundo aquilo que buscamos e ao que deveríamos retornar? Seguramente o Cristianismo, a princípio, era uma experiência totalmente sentimental. Os primeiros cristãos eram em sua maior parte escravos e homens incultos, e o amor pelos seus irmãos ou irmãs criaram um laço frutífero entre si. Muitos cristãos primitivos até se gabavam de não ser intelectuais. Mas de repente o doutrinarismo teológico, as disputas dogmáticas e o seguimento de crenças estrangeiras ganharam a dianteira e o sobrepuseram ao amor ao próximo universal que foi restringido pelo princípio de poder; aquele arqui-inimigo de todas as formas de Amor.
O slogan marxista da solidariedade internacional é em mais de um aspecto um retrocesso ao ideal de amor dos primeiros Cristãos, mas sem fundamentação no lado transcendente, senão em relação ao lado unicamente material da existência.
Em nossa época todas as nações da Terra andam as voltas com a ordem técnica, econômica e intelectual e, por isso, necessitamos especialmente do sentimento na sociedade em geral. Até isso é um dos triunfos da propaganda comunista.
[13] A partir do sistema soviético muito de seus adeptos têm se iludido a este respeito, muitos se voltam a um eurocomunismo e coisas parecidas. Na América do Sul Che Guevara vem sendo celebrado freqüentemente, ao pé da letra, como uma espécie de herói do amor, especialmente pelas mulheres. Apesar de todas as decepções, numerosos representantes eclesiásticos, de todas as confissões, se voltam para o marxismo, porque sentem que ele se encontra ligado ao ideal do amor e próximo do cristianismo primitivo. Mas onde o comunismo teve êxito pelo poder, obteve resultados contrários. Jung escreve[14]: “Os sistemas coletivos, denominados ‘partidos políticos’ ou Estado, atuam destrutivamente sobre as relações humanas. Mas podem também ser facilmente destruídos, porque os indivíduos ainda estão num estágio de inconsciência, que não consegue assimilar o estupendo crescimento e a fusão das massas. Como o senhor sabe, o maior esforço dos estados totalitários destina-se a minar as relações pessoais através do medo e da desconfiança para que surja uma massa atomizada onde a alma humana seja completamente sufocada. Até mesmo a relação entre pais e filhos, que é a mais íntima e natural, é rompida pelo Estado. (...) A única possibilidade de deter esse processo é o desenvolvimento da consciência do indivíduo. Assim torna-se imune à sedução das organizações coletivas. Só assim fica preservada sua alma viva, pois ela se baseia no relacionamento humano.[15] O acento deve cair sobre a personificação consciente e não sobre a organização estatal.” Em outra parte:[16] “(...) a solidariedade e a vida comum da humanidade são uma das questões básicas da existência. Mas a questão se complica, pois o indivíduo também deve apresentar-se como autônomo, o que só é possível se a comunidade possui apenas valor relativo. Caso contrário ela submerge e até destrói o indivíduo e, então, ela própria deixa de existir. Em outras palavras: uma verdadeira comunidade só pode ser formada por indivíduos autônomos, que são seres sociais só até certo ponto. Só eles podem realizar a vontade de Deus colocada em cada um de nós.” (comunidade genuína necessita “compreensão psicológica e identificação nos distintos pontos de vista”).
Muitos jovens, principalmente de orientação esquerda, experimentam hoje uma vida em comunidade, tentando de maneira louvável uma nova forma de relação social. Mas, pelo que eu tenho visto, para concluir, tais comunidades se separam quase sempre devido a suas lutas internas. O sentimento entusiasta de uma aceitação amorosa do outro não consegue se sustentar quando se trata da vida cotidiana, porque é demasiado idealista e sentimentalmente indiferenciado. Por conseguinte, os afetos explosivos dissolvem e terminam a comunidade. Mas afetos e emoções são sinais de um sentimento indiferenciado. Eu analisei alguns jovens que viviam em comunidades e acontecia, sobretudo, como em outras pessoas também com respeito a seus relacionamentos sentimentais, na maioria dos casos eles abandonavam a comunidade original e em lugar dela criavam um círculo de amigos pessoais. Hoje muitos fazem uma forma de culto dos afetos e emoções: positivos, na forma de acontecimentos musicais, ou negativos, mediante disputas. Os que disputam crêem que fazendo isso expressam sentimentos, mas isso não é, contudo, totalmente verdadeiro, pois os sentimentos apenas estão em um estado primitivo contaminados pelas emoções; em contrapartida o sentimento diferenciado não é em absoluto emocional.
[17] Cuidar das emoções e afetos conscientemente é algo doentio e conduzem finalmente à destruição. Mas o que não está certo então com o amor ao próximo cristão e sua continuação mundano-materialista no Socialismo e Comunismo?[18] Seu aspecto positivo é, geralmente, certa empatia humana que nos une com todos os homens, mas seu aspecto negativo é o sentimentalismo emocional infantil, o qual não é outra coisa senão o reverso da brutalidade.[19] Enquanto nossas beatas tricotavam calcinhas de lã para os negrinhos desnudos, os comerciantes de escravos, que eram da mesma religião, destruíam as vidas de milhares de negros. Isso só serve para mostrar que sentimentalismo e brutalidade são os dois lados de uma mesma moeda. Portanto nós não podemos regredir a tal amor ao próximo infantilizado, mas sim devemos retornar a ele como um amor humano de forma geral, em um nível mais elevado. Como seria isso mais ou menos? Jung o chama como uma nova forma de Eros (amor) que tem um efeito totalizador, curativo e é a irradiação da personalidade individualizada.[20]
Este Eros é, a propósito, um princípio feminino.
[21] Esta forma de amor foi simbolizada na tradição alquímica por uma imagem estranha: o sangue de cor rosado que transpira da pedra do sábio ou ‘Homo putissimus’ e que cura todos os homens. Homo putissimus significa o ser humano mais autêntico, o homem mais puro ou o mais genuíno (não mesclado), em contraposição a Cristo, o homo puríssimo, o homem mais puro.[22] Ele é um homem que conhece todo o humano e não é deturpado por nenhuma influência ou mistura desconhecida. Ele libertará o mundo do mal no final dos tempos através do sangue rosado. Isso simboliza certa classe de Eros, que unifica tanto o único quanto os muitos e faz um todo, deve compensar a falta de sentimento da nossa época, uma forma de amor que está ligada com um autoconhecimento mais elevado e com a compreensão interior. O que até aqui foi considerado um amor cristão é cego e sem visão interior, por isso pode se explicar até mesmo a Inquisição. “Quanto mais cego é o amor,” disse Jung,[23] “mais instintivo ele é, e leva a conseqüências destrutivas, pois ele é uma Dynamis, que necessita de forma e direção.” Para seu uso correto necessita de uma consciência ampliada e de um ponto de vista mais elevado, pois o ser humano inconsciente é enganado pelas suas projeções e, por isso, não pode verdadeiramente ver o outro e nem amá-lo como ele é. Uma inconsciência grande em demasia do sentimento produz ainda, em primeiro lugar, uma aproximação grande e íntima demais sem um unir-se, que depois resulta em uma enantiodromia através de mútuas explosões de afeto. Porém, uma relação sentimental diferenciada inclui certa distância, que em cada caso é diferente. Jung escreve em uma carta:[24] “Diminuir as distâncias entre as pessoas é um dos capítulos mais importantes e mais difíceis do processo de individuação. O perigo está sempre que a distância seja construída de forma apenas unilateral, surgindo então infalivelmente uma forma de violência seguida de ressentimento consecutivo. Todo relacionamento tem seu ponto ótimo em distância, que deve ser descoberto empiricamente. (...) As resistências devem ser consideradas com o máximo de atenção...” Jung ressalta que isso é especialmente difícil entre homem e mulher, pois então se mistura ainda a sexualidade. Uma relação sentimental diferenciada seria, portanto, ao mesmo tempo uma profunda compreensão e uma cálida aproximação pessoal com o outro, como também certa distância, um entender-se e um não-entender-se, o qual significa o silencioso respeito ao segredo do outro ser humano. Para um amante cego e instintivo esse distanciamento ocasiona uma grande dor, mas garante a ele ou a ela também a sua própria liberdade, sem a qual a individuação não é possível. Isso me parece um ponto de grande importância e de significado para o futuro.
Em uma discussão sobre o perigo de uma Terceira Guerra, desta vez de uma guerra atômica, expôs Jung que a única força contrária poderia ser um movimento religioso universal,
[25] que conduziria para uma virada total. Desde que Jung escreveu isso em 1945, podemos observar que aconteceram tentativas nessa direção em diversos lugares: uma revivificação do islamismo, seitas como as Bahai, os coreanos Moonies, missões budistas ou incontáveis gurus hindus. Todos eles tentaram ocasionar tal movimento mundial, também não fez menos a Igreja Católica, na qual uma e outra vez “o Espírito, no sentido religioso, move a massa animal,”[26] assim como também mostram os recentes acontecimentos na Polônia. Todavia todos esses sistemas religiosos não são somente um fator redentor, eles mesmos têm também uma sombra perigosa. Um arquétipo que move massas e, principalmente, conduz as pessoas a pensarem que somente elas detêm a Verdade, de forma que, por isso, perseguem aquelas que pensam de outro modo. Além disso, os líderes religiosos ambicionam, uma vez que outra, à semelhança dos líderes políticos, que o indivíduo se identifique totalmente com a sua Verdade, a qual permanece sendo sempre unilateral. “Mesmo que devesse se tratar de uma grande verdade, a identificação com ela seria algo assim como uma catástrofe, de modo a paralisar o contínuo desenvolvimento espiritual. Ao invés de conhecimento tem-se, então, somente a convicção, e isso é às vezes muito mais cômodo e, por isso mesmo, mais atraente.”[27] Em outras palavras, um movimento religioso mundial, a princípio, poderia nos salvar da destruição espiritual do materialismo e, talvez, de uma Terceira Guerra Mundial, mas teria sempre ainda a desvantagem de auxiliar uma certa mentalidade gregária. Somente uma compreensão consciente dirigida à própria sombra e à sombra dos arquétipos, isto é, dos poderes religiosos, poderia nos proteger da psique gregária e sua tendência de ser arrastada à autodestruição. Mas isso significa que temos de desenvolver uma relação sentimental diferenciada – inclusive a necessária distância para com nossos poderes interiores – devemos estabelecer uma relação eu-tu com o Si mesmo, com a Divindade ou o Numinoso, e não, em vez disso, desenvolver um fanatismo religioso não-crítico, o qual se baseia em uma possessão pelo Numinoso.
A relação sentimental com os semelhantes de fora e com as potências arquetípicas no interior andam de mãos dadas de forma estranha. Em suas Memórias Jung acentua que o critério de uma vida é a relação com o ilimitado, isto é, com o mundo numinoso do arquétipo.
[28] “Somente quando eu sei que o ilimitado é o essencial, é que não desperdiço meu interesse em futilidades. (...) Em última instância só se tem algum valor por causa do essencial, e se não se tem isso, desperdiçou-se a vida. Também na relação com outros seres humanos o decisivo é se o ilimitado se expressa nela ou não.” Jung quer dizer com isso que uma relação profunda com o outro somente é possível através do Si mesmo. Geralmente, do ‘eu’ para o ‘eu’ existem somente associações e interesses superficiais. Como o Si mesmo se beneficia em uma relação eu não posso dizer aqui. Jung tentou mostrá-lo em seus livros sobre a transferência e em Mysterium Coniunctionis. Mas uma e outra vez segue sendo uma misteriosa aventura do amor.
Parece-me – para concluir –, que hoje em dia o pedido de Jung está sendo gradativamente melhor compreendido do que no período em que viveu, mas este ponto extremamente importante, a reabilitação do Eros intra-humano e de uma relação sentimental mais diferenciada com o Transcendente, ainda não é muito levada em conta. Muitas pessoas vêm as idéias de Jung como um sistema filosófico ou uma teoria, ou ainda pior, como uma nova ideologia coletiva ou como uma nova orientação na teoria psicológica, algo que nenhuma delas é. O processo analítico é um processo de pura experiência empírica, no qual a psicologia se transcende em si mesma como pura ciência.
[29] No decorrer deste processo tudo se converte em um encontro vivo com entidades interiores e exteriores, com as quais devemos estabelecer uma relação sentimental. O foco de Jung sobre os elementos individuais é, por isso, consciente e a propósito unilateral, para compensar a unilateralidade coletiva predominante. “Há e sempre haverá,” escreve ele por volta de 1934,[30] “os dois aspectos, isto é, o ponto de vista do líder social, que, enquanto idealista, vê o bem-estar numa maior ou menor ocupação do indivíduo (a favor da comunidade), e o líder espiritual que objetiva apenas um aperfeiçoamento do indivíduo. Não vejo possibilidade de uma conciliação entre eles, uma vez que constituem um par necessário de opostos, que mantém o mundo em equilíbrio.” Jung viu sua própria tarefa na melhoria dos indivíduos, que simplesmente não dá resultado sem uma relação sentimental, pessoal e única. Talvez ele entre um dia para a História como aquele cavaleiro procurado, o qual trouxe de volta para a sociedade o desaparecido Santo Graal, o princípio feminino do Eros, isto é, como aquele ‘homo putissimus’ da Alquimia, que transpirava sangue rosado – uma nova forma de Amor curativo e totalizador, que embora não possa eliminar o recentemente chamado par de opostos coletivo-individual, possa construir uma ponte entre ambos.






[1] Carta para Sra.Olga Fröbe-Kapteyn, 16 de agosto de 1947, apenas na edição inglesa, vol. I, p.475.
[2] N.5, 1, jul.1981, p.13 em diante.
[3] O.c. p.17/18.
[4] Cartas, vol. III, p.88, carta de 11.06.1957.
[5] Cf. Ibid., vol. III, carta de 26.5.1956, p. 24-25; cf. carta 09.7.1957, p. 97.
[6] Im Umkreis des Todes. Daimon, Zurich, 1980, p.34.
[7] Cartas, vol. I, carta de 20.03.1937, p. 242.
[8] Cartas, vol. I, carta de 10.10.1933, p. 144.
[9] Cartas, vol. I, carta de 20.01.1934. p.154.
[10] Cartas, em 14 de setembro de 1960, vol. III, p.291-292.
[11] Cartas, carta de 19 de outubro de 1960, vol. III, p. 294-297.
[12] Cartas, vol. III, carta de 06.12.1960, p. 306-307.
[13] Cf. Obras Completas, tomo X.
[14] Cartas, 12.07.1947 para A. Heinz E. Westmann, vol. II, p.78.
[15] Acentuação feita por mim.
[16] Cartas, vol. III, carta de 17.08.1957, destinatária não identificada ma Suíça, p. 100-102 e também a carta de 23.09.1949 para Dotothy Thompson/E.U.A. p. 141-145.
[17] Cartas, vol. II, carta para Aloys von Orelli – Zurique – de 07.02.1950, p.151-152.
[18] C.G.Jung Letters, vol. I, carta para H. G. Baynes em 22.01.1942, p. 311-313. Apenas nas cartas em inglês.
[19] Cartas, vol. I, carta para Conde Hermann Keyserling em 10.05.1932, p. 108-109.
[20] Von den Wurzeln des Bewusstseins. Zürich 1954. Der Philosophische Baum, cap. 7, p. 411 em diante: Das rosenfarbene Blut und die Rose.
[21] C. G. Jung Letters, vol. I, carta para Erminie Huntress Lantero de 18.06.1947, p. 464-465 – (apenas no inglês).
[22] Obra citada (20) Wurzeln, p. 412.
[23] Idem, p. 414.
[24] Cartas, vol. I, carta para Oskar A. H. Schmitz em 20.09.1928, p. 70.
[25] Conforme carta para o Pastor Hans Wegmann de 12.12.1945, Cartas, vol. I, p. 405-406.
[26] Idem.
[27] Obra citada de von den Wurzeln, p. 585.
[28] Memórias, Sonhos, Reflexões. Editora Nova Fronteira, 1963. (O grifo é meu).
[29] Von den Wurzeln, cap. 1, p 590/91.
[30] Cartas, vol. I, para Samuel D. Schmalhausen, carta de 19.10.1934, p. 187-188.

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